Música feita com prazer e que proporciona prazer e informação. Esse é o objetivo de Leo Gandelman em “Lounjazz”, CD que ele produziu e está lançando com sua própria gravadora, a Saxsamba (com distribuição por Rob Digital). Como o título sugere, somos apresentados a uma simbiose da sonoridade lounge (descontraída e relaxante) com o espírito livre do jazz, a partir de um caldeirão contendo samba, bossa nova, choro e outros gêneros devidamente manipulados pelo saxofonista, compositor e arranjador.

O jazz e a música pop brasileira – duas correntes miscigenadas por natureza, que em essência nunca almejaram qualquer tipo de pureza, mas se fortaleceram devido à assimilação de diferentes ritmos – têm sido os pilares da obra de Leo Gandelman. “Lounjazz” abre novos caminhos e a biografia do músico mostra que ele tem licença para esses voos. Além da formação erudita (filho de pianista clássico e de maestro, aos 15 anos já tocava flauta na Orquestra Sinfônica Brasileira), também estudou no Berklee College of Music e, a partir dos anos 80, trabalhou em estúdios e palcos com verdadeiras celebridades da música brasileira. Sua carreira solo, iniciada em 1987 com o disco “Leo Gandelman”, caracterizou-se pela música instrumental que se baseava tanto no lirismo quanto no swing, ou groove. Uma receita que foi entusiasticamente recebida no mercado americano, onde Leo lançou muitos de seus discos, morando grande parte da década de 90 e início do século 21 em Nova York. Lá, além do trabalho solo, também participou, ao lado de jazzistas como Bernard Purdie, Grant Green e Rueben Wilson, do grupo Masters of Groove – que Gandelman trouxe para apresentações no Brasil em 2002.

“Lounjazz” é a consolidação de muitos aspectos da história contada acima. Trabalhos recentes produzidos por Leo, como “Brazilian soul” (1999) e “Pérolas negras” (1997), já antecipavam essa síntese musical, mas partiam principalmente de clássicos da música popular. Agora, como é o caso de seu primeiro disco, o repertório é quase inteiramente original, escrito pelo saxofonista em parceria com o tecladista William Magalhães (companheiro de viagem desde finais dos anos 80) e o baterista Juliano Zanoni (jovem músico que Gandelman conheceu no final de sua temporada em Nova York e que tem sido um parceiro constante desde então). Durante as gravações, instrumentistas como Alberto Continentino (contrabaixo), Nico Resende (violão), André Vasconcellos (contrabaixo), Bernardo Bosisio (guitarra), Sidinho (percussão) e David Feldman (piano) também deram uma contribuição significativa para o consolidação deste conceito.

Na abertura, “Bossa Rara” sintetiza as intenções e o clima do CD: bossa nova totalmente original, em que acústica e eletrônica se unem em prol de uma sonoridade que combina suavidade e swing. Segue-se “Gavião”, faixa mais rítmica, com sabor de samba, que mantém o clima – aliás, Leo e Magalhães acabavam de compor a faixa quando um falcão apareceu em frente à vitrine, dando seu nome como o título. “Dançarará” ganhou letra de Seu Jorge, escrita no mesmo dia da gravação. Leo produziu algumas ideias e o compositor do samba pop traduziu em palavras o que o tema sugeria em uma sessão de brainstorm criativo no estúdio.

Outra faixa de síntese, em “Lounjazz (true blues)” o sax alto de Gandelman move-se sinuosamente através da impressionante percussão (a parte eletrônica, programada por William Magalhães, e a “parte instrumental”, de Sidinho). “Bari bossa” é o veículo de um grande solo de Leo no sax barítono, daí o título.

“Sociedade desconhecida” é a faixa menos convencional do CD, com ecos que percorrem tanto o tango ao acordeão de Marcos Nimrichter quanto o free jazz nos solos de piano de David Feldman. O sax alto de Leo funciona como fio condutor desta viagem, mantendo diálogos e aproximando extremos.

“O iate” tem como ponto de partida o clássico “O barquinho”. Leo criou uma nova composição a partir de uma frase da música de Roberto Menescal (e de Ronaldo Bôscoli), que agora está avançando para outras áreas.

“Amor total” é um dos temas que Léo compôs para a trilha sonora de “Estrela solitária”, no caso, a história de amor entre Elza Soares e Garrincha. Torcedor apaixonado do Botafogo, para compor a trilha sonora do filme que conta a história do jogador mais simbólico de seu time, Leo se envolveu profundamente com a música da época, a partir de um levantamento do fabuloso acervo de discos do escritor Ruy Castro . Além dessa pesquisa, os sons do período sempre acompanharam Leo. No início dos anos 60 seu pai, Henrique Gandelman, mantinha uma gravadora chamada Plaza, pioneira na fusão do samba com o jazz, que lançou discos como “Saxsambando” – que também serviu de inspiração para o nome da gravadora, agora criada por Leo.

Nas recriações de “Lounjazz”, as abordagens também são originais. Um exemplo é a abordagem do “Tico tico lounge”, que traz o quase centenário “Tico-tico no fubá” (Zequinha de Abreu) para as pistas de dança, sem abrir mão da ludicidade desse choro. Ou para reafirmar a contemporaneidade dos afros-sambas de Baden Powell (e Vinicius de Moraes) em uma versão vibrante de “Canto de Ossanha” (preste atenção ao solo fluente de Leo no saxofone tenor).

Outro hit é o lindo samba-canção “Inquietação”, de Ary Barroso, com a participação de Zélia Duncan, faixa incluída no CD como um bônus. A instrumentação, um quarteto básico e fantástico, com Zanoni na bateria, Continentino no contrabaixo, Feldman no piano e Leo Gandelman no sax soprano, é também uma homenagem ao saxofonista John Coltrane e ao seu disco clássico com o cantor Johnny Hartman. O resultado, como em outro clássico produzido por Ary, é puro luxo, cool e profundo.

Para encerrar o CD, mais uma faixa bônus, o remix de “Dançarará”. “Dançarará remix”, “Tico tico lounge” e “Canto de Ossanha” também foram produzidos em pequena quantidade em forma de discos de vinil, para distribuição aos DJs por Leo Gandelman.

Para pistas de dança, salões e mentes, “Lounjazz” é um bilhete irresistível para uma fantástica viagem musical.

Antônio Carlos Miguel – Editor do Segundo Caderno e Crítico Musical do Jornal O Globo

No repertório: Bossa Rara (Leo Gandelman – Juliano Zanoni – William Magalhães), Gavião (Leo Gandelman – William Magalhães), Dançarará (Leo Gandelman – Juliano Zanoni – André Vasconcelos – Seu Jorge), Canto de Ossanha (Baden Powell – Vinicius de Moraes), Lounjazz (Leo Gandelman – William Magalhães), Bari Bossa (Leo Gandelman), Tico Tico Lounge – Arranjo, loops e samples – Leo Gandelman / Bossa Cuca Nova, Sociedade Desconhecida (Leo Gandelman – Juliano Zanoni – William Magalhães), O Iate (Leo Gandelman), Love Total (Leo Gandelman – Nico Rezende), Inquietação (Ary Barroso), Dançarará Remix (Arranjo e programação adicional – Bossa Cuca Nova).